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17 outubro 2018

A demonização dos Direitos Humanos


Não ocorre somente no Brasil, infelizmente. Há tempos a clássica expressão parece ter ganhado uma conotação pejorativa, como se “Direitos Humanos” fosse algo negativo, nefasto, ruim.


Direitos Humanos são uma expressão que designa o conjunto de direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana. Direitos básicos, imprescindíveis, fundamentais, irrenunciáveis, válidos para todos os cidadãos do mundo, independentemente de seu país de origem.

São inúmeros os documentos internacionais que versam a respeito dos Direitos Humanos:

  • Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);
  • Declaração do Direito ao Desenvolvimento (1986);
  • Declaração e Programa de Ação de Viena (1993); Declaração de Pequim (1995);
  • Declaração americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948);
  • Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966);
  • Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966);
  • Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969).

Da forma como são entendidos hoje, os Direitos Humanos “nasceram” no início da era moderna, sob a influência de uma série de eventos históricos, notadamente a Revolução Francesa e a Independência Norte-Americana. Porém, bem antes, ainda na Idade Média, houve a Magna Carta dos ingleses.

Em 1215, uma revolta de barões ingleses contra o então rei João “Sem Terra” resultou na outorga da Magna Charta Libertatum. Esse documento histórico, redigido em latim, apesar de ter seus efeitos restritos à nobreza, limitou os poderes do rei, sendo então um documento pioneiro nesse sentido:

  • Em face desse acordo histórico, foram reconhecidas e garantidas a liberdade e a inviolabilidade dos direitos da igreja e certas liberdades aos homens livres do reino inglês. Mais do que isso, a Magna Carta deixa implícito pela primeira vez na história política medieval, que o rei acha-se naturalmente vinculado pelas próprias leis que edita. (...) O importante é destacar que a Magna Carta inaugurou a pedra fundamental para a construção da democracia moderna, pois, a partir dela, o poder do governante passou a ser limitado, não apenas por normas superiores, fundadas no costume e na religião, mas também por direitos subjetivos dos governados.”(Curso de Direito Constitucional, Dirley da Cunha Jr, pg. 458).


O ítem 39 da célebre Carta consagra o direito de ir e vir, a proibição das prisões arbitrárias e a exigência do devido processo legal:

  • Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.


Outra contribuição notável dos ingleses ao Direito Moderno foi a Lei do Habeas Corpus (Habeas Corpus Act), em 1679. Importante ressaltar que o writ já existia na Inglaterra, mesmo antes da edição da Magna Carta, como costume, mas a lei veio normatizar e ampliar sua aplicação.

O célebre instituto do Habeas Corpus é pedra fundamental do Estado Democrático de Direito, da sociedade moderna como um todo; é o remédio constitucional por excelência, figura base de um processo penal democrático; inspirou ainda a figura jurídica do Mandado de Segurança no direito brasileiro.

  • A importância histórica do habeas corpus, tal como regulado pela lei inglesa de 1679, consistiu no fato de que essa garantia judicial, criada para proteger a liberdade de locomoção, tornou-se a matriz de todas as que vieram a ser criadas posteriormente, para a proteção de outras liberdades fundamentais.” (A afirmação histórica dos direitos humanos. Fábio Comparato. Pg. 54).


Ainda na Inglaterra, ocorreu a edição da também célebre Declaração de Direitos (Bill of Rights), em 13 de fevereiro de 1689, resultado da Revolução Gloriosa de 1688. A Bill of Rights eliminou o então vigente sistema de monarquia absoluta, passando o sistema a ser uma monarquia constitucional. O Parlamento ganhou poderes até então inéditos, tornando-se um órgão que defende os súditos perante seu rei. (Curso de Direito Constitucional. Dirley da Cunha Júnior, pg. 460).

A independência das treze colônias da América do Norte trouxe a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia. Esse documento é considerado a primeira Declaração de Direitos da era moderna e inspirou posteriormente a Constituição dos Estados Unidos. Foi uma declaração pioneira em muitos aspectos, uma declaração ao direito à liberdade:

  • I

  • Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.

  • II

  • Que todo poder é inerente ao povo e, conseqüentemente, dele procede; que os magistrados são seus mandatários e seus servidores e, em qualquer momento, perante ele responsáveis.


A Revolução Francesa varreu a França em 1789; a importância desse evento histórico não pode ser resumida em poucos parágrafos. Como herança ao mundo moderno, a Revolução Francesa trouxe a clássica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão está vigente até hoje na França, formando um bloco de constitucionalidade, que serve de parâmetro às leis francesas.

Dispõe o preâmbulo do imortal documento:

  • Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.


O ítem I trata da liberdade, bem jurídico base da sociedade moderna:

  • Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.


Essa série de eventos históricos é hoje chamada pelos estudiosos de 1ª geração dos direitos humanos, a geração dos direitos da liberdade, direitos essencialmente civis e políticos, frutos de revoluções, lutas sangrentas, pessoas que literalmente deram a vida por seus ideais. A liberdade, o direito ao voto (este, aliás, por muito tempo restrito às classes sociais abastadas e aos homens), o instituto do Habeas Corpus, são conquistas históricas, que não vieram do nada.

A 2ª geração de direitos humanos trata dos direitos sociais, econômicos e culturais. Frutos da luta da classe trabalhadora, das camadas sociais desprezadas pelo poder do capital. A Revolução Mexicana de 1910 e a Revolução Russa de 1917 marcaram esse período histórico.

Um dos documentos que influenciou esse período foi a “Encíclica Rerum Novarum sobre a condição dos operários”, escrita pelo Papa Leão XIII em 1891. E, claro, ao clássico “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels, em 1848.

A introdução da Encíclica:

  • 1. A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efetivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito.

  • 2. Por toda a parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só basta para mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o gênio dos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito humano.

  • 3. É por isto que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e da salvação comum dos homens, em Nossas Encíclicas sobre a soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados (1) e outros assuntos análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniões errôneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da Condição dos Operários. Já temos tocado esta matéria muitas vezes, quando se Nos tem proporcionado o ensejo; mas a consciência do Nosso cargo Apostólico impõe-Nos como um dever tratá-la nesta Encíclica mais explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os princípios duma solução, conforme à justiça e à equidade. O problema nem é fácil de resolver, nem isento de perigos. E difícil, efetivamente, precisar com exatidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho. Por outro lado, o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar.


A Encíclica mostra que a Igreja estava ciente dos problemas sociais e de suas causas:

  • Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O século passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários.


A Constituição Mexicana de 1917 foi a primeira do mundo a trazer em seu corpo a previsão dos direitos sociais. O Título Sexto, “Del Trabajo y de la Previsión Social” trata dos direitos sociais:

  • Artículo 123. Toda persona tiene derecho al trabajo digno y socialmente útil; al efecto, se promoverán la creación de empleos y la organización social de trabajo, conforme a la ley.


Em tradução livre:

  • Art. 123. Toda pessoa tem direito ao trabalho digno e socialmente útil; com efeito, promover-se-ão a criação de empregos e a organização social de trabalho, conforme a lei.


A Constituição de Weimar de 1919 também trouxe em seu corpo a previsão de direitos sociais; a Constituição brasileira de 1934 foi influenciada por esse período histórico.

A 3ª geração de direitos humanos trata basicamente dos direitos difusos, direitos do consumidor, a um meio ambiente saudável, e são mais recentes do ponto de vista histórico.

Finalizando, veio a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em 1948. Reação da humanidade aos horrores da 2ª Guerra Mundial, essa Declaração traz direitos que são, ou deveriam ser, a base de um Estado Democrático de Direito que mereça esse nome. Traz em seu rol de direitos fundamentais a todo e qualquer ser humano: o direito à vida, à liberdade, a igualdade de todos perante a lei:

  • Artigo 1

  • Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.


A história dos Direitos Humanos é, acima de tudo, uma história de lutas. Conquistas históricas que jamais devem ser deixadas para trás.

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